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- A inutilidade diária (ou como comecei a escrever sobre p*taria e trabalho)
Quem diria que estaríamos aqui, não é mesmo? O ano era 2021. Mais especificamente, entre julho e agosto. Lembro porque eu estava acomodada no quarto verde, após ter feito uma estação de trabalho mal-ajambrada na minha velha bancada da adolescência, cheia de papéis me rodeando e uma cama bagunçada atrás. Em uma das janelas de navegação, Rayssa Leal deslizava sobre corrimãos em busca da sua primeira medalha olímpica. Na outra, eu escrevia a primeira coisa verdadeiramente diferente da minha carreira. Até então, eu não havia cogitado escrever clichês, mas minhas amigas Bia Carvalho e Luciane Rangel me deram um incentivo. Apenas um pseudônimo e pronto: eu faria um bom negócio entrando nesse mercado naquele momento, em que eu estava desempregada e lidando com as feridas de um assédio moral. CEOs faziam muito sucesso à época. "Pois pronto, vou fazer a história de um CEO imbecil e de uma assessora que quer esganar o pescoço dele de cinco em cinco minutos." Esse é o início da minha jornada com Meu Chefe é um Inútil , um romance despretensioso cujo propósito era apenas me fazer juntar uns trocados a cada três meses através da Amazon. Sem muito enredo, mas com putaria o suficiente para assegurar algumas calcinhas molhadas - pelo menos, era essa a minha ideia primordial. O problema? Eu tinha muita coisa para falar. Otome games , traumas e ódio Conde Lucio (The Arcana) e Jaehee Kang (Mystic Messenger) A princípio, dois personagens de diferentes jogos otome game (para quem não conhece, são jogos centrados em romances, majoritariamente conduzidos por personagens femininas) me inspiraram para criar o casal que estrela esse romance. Por serem não apenas de enredos e universos completamente diferentes, mas terem personalidades cem por cento opostas, pensei que seria uma ótima maneira de criar a dinâmica da dupla central. Como os jovens diriam hoje, grumpy x sunshine . Júlia Ponte (Thalirães) Logo no início, porém, quando nossa heroína proletária Júlia começou a se formar na narrativa em primeira pessoa, percebi que não conseguiria focar apenas em cenas de teile, e puxe, e pegue, e naipe . Júlia trabalha, tem raiva, está desiludida. Uma moça millennial e com questões tipicamente millennials , como ter estudado tanto para, no fim do mês, ganhar apenas metade do seu piso salarial e, com sorte, não ser demitida. Júlia a princípio recebe tão pouco que sequer tem a chance de alimentar o sonho de, quem sabe, comprar a casa própria - mas talvez ela possa se organizar para assistir ao show do seu grupo favorito de k-pop . Afinal, algum bônus precisa existir no meio de tanto ônus. Lorenzo Mont'Alverne (Thalirães) Na outra ponta, temos Lorenzo , um mestre em Meio Ambiente que, até então, não conseguia trabalho por ser "qualificado demais". Já resignado a trabalhar na Uber, Lorenzo tira a sorte que todo brasileiro quer ter: recebe uma herança milionária do pai que o abandonou ainda nas fraldas. A ficção me abriu margem para sonhar um pouco e dar um destino mais generoso a esse herói do século XXI. Primeiro objetivo de Lorenzo quando consegue acessar à sua piscina particular do Tio Patinhas? Reformar a casa do avô. Atire a primeira pedra quem nunca desejou dar um lar melhor à família. Ambos os personagens me davam margem para falar de uma realidade que não era apenas minha, mas facilmente encontrada nos inúmeros posts desesperados no LinkedIn. O "sim" não estava chegando e, se vinha, era desenhado na mais clara exploração do trabalhador. Salários cada vez mais baixos, cobranças irreais, exigências de vestir camisas que não se adequam aos corpos que batem ponto nas primeiras horas do dia. E as recusas, então? Distantes, redigidas por Chat GPT, textos padronizados enviados pela Gupy. Isso, é claro, para não falar das vagas fantasmas . Escrevi muito sobre isso ano passado, durante os dez meses em que fiquei desempregada e com completo pavor de enviar qualquer currículo. Ainda assim, não era o suficiente. Não era porque minha realidade e meus traumas também precisavam ser sublimados. Eu tinha (tenho) raiva e muitas palavras entaladas na garganta, humilhações que não estão redigidas na minha carteira de trabalho. Uma delas, inclusive, aconteceu na minha última demissão em fevereiro, fantasiada de cuidado quando, na verdade, foi apenas capacitismo, discriminação e psicofobia para com meu recente diagnóstico de autismo. Eles seguem enquanto minhas feridas supuram, meu receio de falar com desconhecidos aumenta e meu terror para sair de casa agiganta. Deixei morrer na garganta e amargar na língua, escondido atrás de um sorriso vago. "Algo sobre minhas entregas?", foi o que realmente perguntei, com a agenda em punho para apresentar todos os meus resultados. Não, nada. Para reforçar que eu valia o investimento, mostrei ainda assim todas as minhas atividades – as concluídas, as em andamento, as finalizadas. Fábio permaneceu calado. Não havia o que alegar diante do óbvio. "Continue assim", e deu por encerrada a reunião. Trecho de Meu Chefe é um Inútil Aprendi com a escrita desta história que humor também é arma. Rir do que aconteceu também é rir dos nossos algozes, dar-lhes julgamento que nenhum júri seria capaz de entregar. A consequência, esta fica comigo, mas existe força quando uma experiência ressoa no outro. E no outro. E no outro. É como dizem pela internet, "nenhuma experiência é individual". Foi rindo sozinha, em uma tarde de domingo dedicada à escrita, que percebi que, de fato, eu não estava querendo apenas uns trocados da Amazon com minha própria pornochanchada literária. Eu sou uma trabalhadora brasileira e com muita história para contar. Tapas , publicação underground , daqui para frente Capa de Meu Chefe é um Inútil ( Kah Design ) No início do carnaval, resolvi que não esperaria finalizar a história para, só então, publicá-la. Sou cria de fanfiction , da publicação independente e underground viabilizada pela internet, caótica, livre. Resolvi postar, mais uma vez, a história em sites que disponibilizam ferramentas para esse tipo de coisa, e troquei o Wattpad pelo Tapas. Acima de qualquer coisa, postar com regularidade me ajuda a manter uma rotina, algo necessário e urgente para minha saúde mental. E, além do mais, é uma forma de eu processar também minhas próprias questões com trabalho, das mais novas às que ainda estão cicatrizando. Semanalmente (podendo se estender para quinzenalmente), às segundas-feiras, um novo capítulo de Meu Chefe é um Inútil será publicado no Tapas, às oito em ponto. É meu próprio expediente, e convido a todo mundo para iniciá-lo comigo. O link de acesso é esse aqui. E se você quiser entrar no clima da história, não deixe de conhecer a playlist. Só clicar no botão abaixo.
- Treze anos no temporizador
Arthur Rackham Mesmo sendo habilidosa com as mãos, odeio usá-las para cozinhar. Não suporto. Das habilidades mais básicas da vida, preparar meu próprio alimento é a que menos domino e a qual mais sinto aversão. Há uma série de fatores: o espaço pequeno da minha cozinha, que permite apenas uma pessoa por vez entre a bancada e o fogão; a supervisão do Diego, que jamais fez curso, porém é exigente feito um chef francês da alta culinária; o tédio que me assola logo nos primeiros minutos do preparo. Por não ser algo que me motiva, me distraio. Quero sair de perto das panelas, dos ingredientes dispostos sobre o mármore. Não tenho qualquer paciência para obedecer ao tempo de cada coisa que vai ao fogo. Apesar de ser inimiga número um de qualquer coisa que envolva culinária, reconheço que a metáfora da cozinha é a que melhor se aplica à vida como um todo. Da mesma maneira que um alimento tem seu próprio tempo de cozimento, de minutos a horas, tem coisa que também só funciona seguindo relógio próprio. Tudo demora para quem, como eu, é impaciente e ansioso. Mas ter pressa jamais adiantou ponteiro algum. Neste ano, voltei à universidade para ficar em paz com a minha consciência. Por muito tempo, me julguei por jamais ter conseguido concluir meu curso de Letras na federal daqui. Ainda que racionalizasse os motivos para não ter pegado o canudo (eu trabalhava, os horários eram ingratos, eu detestava a grade curricular e os professores com a mesma sensibilidade de um cavalo dando coice), o julgamento estava ali, me maltratando internamente. Vinha de dentro, mas também de fora, em forma de comentários da família, de conhecidos. Alguns amigos sequer entendiam por que eu estava voltando para algo pelo qual nutri tanto desgosto - e minhas justificativas pareciam ainda mais sem sentido. Porém, mudar de universidade foi uma boa estratégia. Troquei a federal pela estadual. O curso, antes feito com certo sofrimento, se tornou magicamente atrativo para mim. Professores mais humanos, diálogo mais aberto, grade curricular que me brilha os olhos. Gosto de fazer Letras na UECE porque conversa comigo, com os meus interesses e com a minha realidade enquanto trabalhadora. Nesse processo de redescoberta, assuntos que antes me causavam aversão me despertam interesse para saber mais, discutir, conversar. Literatura foi um deles. Fizemos as pazes, a Literatura e eu. Ela me parece menos abstrata, um tiquinho mais tangível, mesmo que coisa pouca. Mérito, também, do meu professor Douglas, por quem me afeiçoei rapidamente. Sinto vontade de ser participativa nas aulas dele e estou sempre anotando diagramas que, mais tarde, me fazem pensar. Como quando perguntei o que, para a academia, servia de princípio para classificar um livro bom ou não. Douglas me explicou que era tanto a forma quanto o conteúdo, mas resumiu ao dizer que o texto bom é aquele que perdura . Que atravessa os anos e se mantém atual, abraçando a complexidade de ser humano. Pode fazer muito sucesso agora, porém, se ficar apenas na superfície, vai ser esquecido. Fiquei pensativa sobre alguns nomes que foram sucesso estrondoso na década passada, inclusive na minha adolescência, mas que surgem menos nas bocas das pessoas que leem. Meg Cabot, por exemplo, era referência de livro jovem para quem, como eu, teve seu estirão nos anos 2000. John Green foi avassalador na década de 2010. Jojo Moyes vivia sobre as prateleiras mais acessíveis das livrarias - isso, claro, falando de nomes estrangeiros, porque não vou trazer à pauta colegas do lado de cá. A reflexão chegou em mim feito um piano sendo lançado sobre a minha cabeça do décimo sexto andar de um prédio da Aldeota. E, ainda assim, acredito que mesmo o piano teria doído menos. Entrei muito nova no mercado editorial, emulando a escrita dos livros gringos que chegavam às minhas mãos e aplicando todas as regras que aprendia para fazer redação no vestibular. Essa, inclusive, foi uma fase péssima na minha vida: havia sido aprovada para um curso que não era o meu desejo, me sentia completamente incapaz de entrar em outra graduação mais alinhada comigo, media meu valor pelas notas das provas que fazia. Era a ansiedade da escola elevada à potência com a entrada do fator "universidade". Eu não me via como professora - principalmente da educação básica. Venho de uma família ligada à educação, pai e tios professores, mãe pedagoga (ainda que jamais tenha exercido). Meu caminho apontava para trabalhos ligados à criatividade, que fossem práticos. Escolher viver de escrita nessa idade parecia natural não apenas porque inseria esse fator de extrema importância para mim, como também me validava perante os outros: eu tinha capacidade de escrever um livro inteiro, completinho. Conseguia começar e terminar algo sem desistir no meio do caminho (coisa sempre pontuada pelos meus), sem precisar alcançar notas estrelares no vestibular. Algo que me destacava ao meu próprio modo, que dizia para um conjunto de pessoas que, sim, eu valia a pena. Eventos mudaram completamente essa visão da escrita enquanto ofício, por mais que não tenham alterado em nada o meu desejo de ser validada. Se não fosse pelo meu ciclo de conhecidos, que fosse por uma casa editorial grande, respeitada, por pessoas do ramo, gente que pudesse me olhar e dizer aquilo que eu não conseguia enxergar em mim mesma. Essa necessidade da aprovação externa me deixou em um estado ansioso que me fez percorrer caminhos errados, muito custosos. Me atropelei para me encaixar naquilo que diziam que era a cartilha do escritor contemporâneo: lançamentos consecutivos e em tempo hábil para evitar o esquecimento dos leitores, das redes. Aceitei contratos em que eu perdia muito, em vários sentidos, apenas para tentar angariar essa aprovação tão desejada. Como resultado, fiquei sem grana e coloquei no mundo textos inacabados, que poderiam ser melhores se eu tivesse me acalmado o mínimo possível. Foi só nesse ano, porém, quando resolvi lançar Entre quadros e balões de maneira independente (coisa da qual muito me orgulho), que percebi certos problemas na maneira como o mercado editorial se articula hoje, em vias de virarmos o ano. A começar pela necessidade de presença online constante, quase a nível de criação de conteúdo, para fazer o livro chegar em quem precisa. Tentei, Deus sabe que tentei, apenas para me frustrar quando o Instagram, meu atual e principal nêmesis, derrubava meu alcance em qualquer mídia - vídeo, foto, story . Não vinguei no TikTok, mesmo tendo criado um calendário bonitinho de posts e seguindo as tendências do momento. Não obtive sucesso no finado Twitter, que o diabo o tenha, angariando tão poucos retweets que nem valia a pena o esforço. E aí veio a porrada: o problema está em mim, em minha péssima alma marqueteira, ou está nessa internet que se centraliza em torno de redes sociais e big techs ? O artigo da Rebecca Jennings é muito elucidativo nesse ponto , ao mostrar que, independente de qual seja a sua área, ser criador de conteúdo virou a exigência da nova década. Falo da escrita porque também faz parte da minha atuação enquanto profissional, porém não posso não citar minha vivência enquanto designer e os meus dez meses de desemprego. Um dos conselhos mais recorrentes que recebi foi estar presente no LinkedIn. Me fazer ser vista por recrutadores, mostrar minhas habilidades e, em algum nível, produzir conteúdo, sim. Como falei nesses dias, a sensação constante era a de ser um pássaro tentando acasalar. Praticamente um pavão macho. Unida a isso, vem a primeira regra do novo escritor contemporâneo, aprendida lá atrás, quando eu sequer tinha atravessado o vale que separa adolescência e vida adulta: publicar constantemente para não ser esquecido. Nessa nova década, extrapolaram esse item da cartilha. A velocidade de consumo de informação atingiu um nível surreal, a ponto de nós mesmos não darmos conta do tanto de coisa que nos chega. Uma passeada rápida pela Amazon mostra todo um catálogo de livros e mais livros e mais livros que o algoritmo vai entregando assim, em cascata, títulos e capas se confundindo em uma maçaroca de formas e cores que, após um tempo, se aglutinam e vira uma coisa só. Para alimentar o consumo desenfreado, uma produção desenfreada. Não é assim que o capitalismo, afinal, funciona? Se minha ansiedade antes residia em publicar textos para conseguir a aprovação externa, ela mudou o foco principalmente neste ano, pós-EQB. Eu não estava mais preocupada em viabilizar um livro, mas sim em agradar um algoritmo, um bocado de códigos que ninguém consegue entender às claras, de regras confusas, perenes. Foi quando percebi que, não, meu nível de produção não é o mesmo do que uma rede social exige. Me demoro muito trabalhando um romance, um roteiro. Independente do que eu faça, a menos que me atropele de novo, é impossível não ser esquecida. Eu serei. E não estou nem um pouco disposta a pagar por um seguro. Foi nesse contexto que as aulas do Douglas chegaram em mim, no exato momento em que eu me sentia confusa e ansiosa por aquilo que não tenho controle. A epifania veio feito holofote em show de forró no interior do Ceará, ligada para desorientar mesmo. O tempo do mercado editorial, que hoje obedece a essa internet centralizada, focada em produção incessante de conteúdo, não dialoga com o tempo da literatura. São dois cronômetros diferentes, planetas que rotacionam ao redor do Sol segundo sua própria natureza. Um ou outro vai ser escolhido, e escolher também significa sacrifício. Respeitar o tempo de um texto pode até garantir, quem sabe, uma vida mais longeva a ele, mas seguir por esse caminho é abrir mão da própria existência dentro do contexto virtual. Na contramão, assegurar a presença online pode reduzir o tempo útil do livro. E não há problema em escolher ou um, ou outro, desde que essa opção seja feita com consciência. Jamais como imposição. Logo no primeiro capítulo de Romancista como vocação , Murakami faz umas analogias bem interessantes sobre a insistência do escritor em sua atividade. "O romance se parece com um ringue de luta livre, onde qualquer um pode entrar como quiser", diz. Adiante, explica a ideia: "Escrever um ou dois romances não é muito difícil, mas continuar escrevendo por muito tempo e viver disso é uma tarefa árdua". Para Murakami, se manter enquanto romancista exige algumas coisas, como determinação, sorte, coincidência, mas principalmente competência para permanecer. "Os romancistas sabem muito bem quão árduo é continuar sendo romancista." Segundo o escritor, a velocidade para escrever um romance é como a de uma caminhada, mais devagar do que um passeio de bicicleta. Tem que ser feita na marcha lenta. Noemi Jaffe, em Escrita em movimento , corrobora com o pensamento do autor. Explica: "Escrever é um ato lento e assim deve ser. Prestar atenção aos detalhes, cultivá-los, demorar-se sobre eles e permitir que também o leitor conheça cenas e personagens em suas nuances é um trabalho exaustivo e incessante." Claro, isso não é regra. Nem todo mundo vai enxergar o próprio trabalho com a escrita como algo que deva demorar - afinal, livros também são sustento, e boletos não escolhem data. Não tenho o menor interesse em dizer o que é certo e o que é errado, porque não acredito em certo e errado em arte. O que me guia hoje, porém, é essa consciência sobre aquilo que quero e que faz sentido para mim, independente do que o Zuckerberg decida sobre seus puxadinhos na internet. Mesmo detestando cozinha, consigo ver que literatura e mercado agem de acordo com temporizadores diferentes. Escritores idem. O preparo de uma farofa de calabresa não será o mesmo de um risoto, que também não passará o mesmo tempo que um bolo no fogo. Não há problema nenhum. Não confundir as receitas, porém, é essencial. Para quem cozinha e para quem se alimenta. Demorei treze anos para entender e ajustar o meu temporizador. O lado positivo é que não erro a receita nunca mais.
- Malamanhada
Meu espelho nunca me disse que sou bonita. Bodejava, na verdade, feito papagaio. "Seus peitos estão muito grandes". Para o conserto, oito mil reais, juntados desde que me pus no mundo, atrevida demais para esperar nove meses completos. "Sua barriga está grande". Sem biquínis em meus armários. Ao contrário, lençol de cama moldado ao corpo para esconder dos olhos alheios aquilo que eu mesma também não suportava ver. "Você está fortinha", mas não era sobre os três quilos de músculos que havia adquirido naqueles meses. "Obesidade não faz bem para ninguém", decretava, ignorando o jorro de sangue sobre o qual eu não tinha controle, e que minava minhas forças mais do que três dígitos na balança. Nos meus diários de diferentes fases da vida, residem listas de coisas de coisas a serem mudadas. A voz infantil. O andar saltitante. A pouca concentração nas minhas tarefas, nos meus estudos. "Só falar de anime com quem gosta de anime. Não levar as brincadeiras tão a sério." O raciocínio lógico sempre em desvantagem, números que não se juntavam para fazer sentido, e sim para que verter de mim toda a água do corpo. As medidas que nunca estiveram na casa dos 30, crime que os tradutores de Meg Cabot anunciaram através do título, a etiqueta 42. Para Douglas Adams, a resposta de tudo; para quem viveu os anos 2000, sentença. Nunca dei cabo a nenhum dos itens dessas listas, que se repetiam como metas de ano novo, desperdício de papel reforçado ao fim de cada calendário. O espelho chamava de falta de força de vontade. Usava tom desdenhoso para apontar o açúcar que meu corpo celebrava em receber. Se fazia de médico, usando estetoscópio para dizer que não se cuidar assim me faria perder os homens, os que estavam na minha cama e os que viveram apenas nos meus diários. Toda malamanhada. Que não cabe em qualquer cadeira, em assento de ônibus, em roupa de loja de departamento. Que não consegue botar um brinco, um blush, uma roupa mais arrumadinha, um hidratante ao fim do dia. Que não aproveita a vida porque a vida se aproveita em meio de gente, de barulho, de álcool 70% virado goela abaixo. Para quem a pele não suporta perfume no cangote, atrativo para lábios. Mas, sim, quem sempre se permitiu viver escondida por trás de saco de batatas. Aos poucos, os espelhos deixaram meus quartos. No escuro, se para eles eu olhasse, veria bicho feio, à espreita do sono da criança que desgostava das luzes apagadas. Foi assim que aprendi, que não se olha para espelho de noite. De dia, tamanhos compactos refletem apenas o que eu preciso para não borrar o batom, para ver se a pele está limpa e os dentes, escovados. Às fotografias, não presenteio com frequência com meu rosto. Mas me deixo refletir em superfícies opacas, tintas, adesivos e dedos sujos de cola. A lateral da mão, manchada ora de azul, ora de preto, diz mais verdades que maldição de madrasta má, reforço que vem não do que se vê, e sim do que se ouve por aí. Malamanhada, com certeza. E bem jeitosinha também.
- Com CEP registrado
Arthur Rackham Fui apenas uma vez à Bienal de São Paulo, em 2016, quando transitar entre regiões ainda não era um custo impossível. Com um ajuste aqui e ali, dava para encaixar viagens interestaduais. Na época, anterior à publicação de Fisheye, conheci pessoalmente amigos queridos e distribuí cartões de visita que nunca receberam resposta. Nesse ano, me organizei para ir para a Bienal do Rio em 2025. Passagem comprada, hospedagem na casa da minha prima, tudo certo. Mas ninguém espera passar dez meses desempregada, sujando o nome pela primeira vez após muitas entrevistas de emprego que não me levaram a canto algum. Para a dívida não agigantar - mais -, pedi reembolso das minhas passagens. Os e-mails que enviei, perguntando sobre como participar de estandes, também nunca retornaram. Desconhecida como sou, não valho o tempo de um e-mail em retorno. Mas, nessa semana, falei "em 2026, vai rolar São Paulo!" Coisa de minutos depois, pensei: "vai mesmo?" A dívida tá gigante, e tenho sonhos que requerem investimento também. Sonhos que não alimento só, mas com o homem que escolhi como companhia há quase vinte anos. E, pela primeira vez em uma década, cheguei à conclusão de que não valia a pensa a despesa financeira. Quando se investe - sozinha - no próprio trabalho, sendo uma trabalhadora e tendo uma única fonte de renda, certos gastos se tornam impossíveis. Gastos, sim, porque escrita, para mim, ainda é dinheiro que vai e nunca volta. Quase como um hobby caro, hobby que também é trabalho. Na vida da escrita, precisei escolher se eu desrespeitava meu ritmo lento, moroso, em prol de uma produção em escala industrial, ou se seguia meu próprio funcionamento que, por mais demorado que seja, dá um resultado sem muito desgaste físico e mental. Decidi que não faria da escrita uma fonta de renda, e que todo dinheiro gasto em livros e processos editoriais voltaria para os livros, como o fluxo de caixa de uma empresa. Meu aporte é baixo, pequeno, porque eu mesma não tenho como aumentar os valores. Se estivesse ao meu alcance, eu daria o mundo em prol dos meus projetos. Faço aquilo que posso. Amarguei quando pensei pela primeira vez que, talvez, fosse mais jogo resolver minhas pendências e reservar uma grana para meus projetos com Diego do que entrar em outro ciclo de dívidas para participar de um evento fora da minha rota. A centralização da arte no Sudeste mói quem está tão distante desses espaços. Ainda nesses dias, a escritora Fernanda Castro explicou sua ausência na edição de 2024 do Prêmio Jabuti, em que ela figura como uma das finalistas . Sem um apoio da editora que a publica e sem qualquer retorno a respeito da instituição responsável pela premiação, Fernanda foi sincera: não vale a pena pagar para ser premiada, ida e volta que não custam menos do que dois salários mínimos. Sua ausência à premiação foi, portanto, uma escolha pessoal. Sei dos valores porque não moro muito longe de Fernanda. Se comprada com antecedência, ainda assim a passagem seguirá na casa dos quatros dígitos - se em cima da hora, chega a custar três ou mais salários mínimos. Apenas uma viagem entre estados, sem contemplar os gastos com deslocamentos, alimentação, acomodação. Em síndrome do elogio ao "eu", me deparei com pessoas fazendo comparações desonestas - querendo, acima de qualquer coisa, um protagonismo no pódio das dificuldades. Puseram as horas viajadas de ônibus em patamar similar aos custos de uma ponte entre regiões diferentes do país. "E eu? Eu também sinto dificuldade! Vocês são privilegiados por morarem em capitais", disseram. Mas ignoraram os números e as possibilidades que se têm quando existe tal quantia em uma conta bancária. Três salários mínimos, para uma parcela da população, corresponde ao salário do mês. É mais do que muitos brasileiros recebem por dias trabalhados. É a soma de uma dívida com o banco, a razão da inadimplência de muitos. É a possibilidade de comprar um eletrodoméstico novo, o investimento em um curso que abrirá portas na carreira de um trabalhador. É, em casos mais extremos, o valor de um remédio de uso recorrente. É a reserva de emergência, um processo editorial independente em alguns casos. É muito, e também nada para quem tem mais posses. No momento em que um evento cultural se centra em apenas uma região do país, a mensagem é clara a respeito dos nomes que devem figurar listas que verdadeiramente importam. Quem não está dentro desses limites, que lute. Que comam brioches. Que pena. No momento em que um país se volta para um único ponto no mapa, regionaliza-se quem não compartilha o mesmo CEP. Limita-se, dificulta, põe-se em categorias menos importantes tantas vozes habilidosas. Dá o veredito a quem cria: o que é mais importante para você? Sua carreira? Seu mercantil mensal? Suas contas pagas e nomes limpos? Se fazer visto por quem detém o poder da cultura brasileira? Me vi em Fernanda, e em mais tantos outros artistas que priorizam necessidades e urgências porque não há outra coisa a se fazer. Me vi em cada palavra indignada que habitou as redes nos últimos dias, e nas conversas doloridas que tive com amigas do meio. E percebi que, por mais amargo que seja esse sabor, é o necessário. Escrever vale o mundo, mas só sabe o que é uma dívida no Serasa quem já teve o nome sujo. E, nessas situações, a literatura seguirá nos últimos lugares do pódio das hierarquias.
- Sem nome, sem documento
Chamei de "coisa sem nome". Com o CID mudando a cada novo sintoma, entendi que nem meu médico sabia ao certo como nomear. O que há em um nome? Uma rosa, com qualquer outro nome, teria o mesmo perfume, já disse Julieta, os braços ao redor do pescoço de Romeu. Para dores e amores, designações não fazem diferença. Não há em minha certidão o sinal da paixão proibida, um Montecchio que me limite a encontros furtivos na varanda. Em meu corpo, porém, reside os sinais desses registros que não se firmam, os efeitos para conter a criatura sem batismo. Os soldados foram vários. Fluoxetina, quetiapina, trazodona, topiramato, lítio, lorazepam. Lurasidona. O fígado já envelhecera pela mudança sequenciada das tropas. Se em conjunto, essas frentes que vinham de senhores variados, o desequilíbrio surgia. Eu dormia dormia no meio de reunião, à luz dos colegas de trabalho, ou andava com asas nos tornozelos, flutuando, leve demais até para comer. Sem peso, mas com voo certo, marcado a partir das três da manhã. Dentro de mim, a coisa fingia controle. Passava de bicho domesticado para atacar ao primeiro olhar desatento. Fiz dossiê para documentar seu surgimento, seguindo critérios quase científicos: entrevistas com quem me vira nas fraldas, anotações sobre minhas próprias palavras ao longo da vida, lembranças que quase foram condenadas ao desaparecimento. Para meu Rumpelstiltskin, tudo que levei reforçava apenas a sua teoria - a de que o nome que eu pensava era apenas uma tentativa, minha, de me enquadrar em publicações populares de rede social, conhecimento que saía das mãos acadêmicas para uma plebe inculta. Ele sapateou sobre minha tese, negando o nome que eu tanto procurava, ainda que não estivesse vermelho de raiva. Mas insistiu na química que já não fazia mais efeito sobre meu corpo. Fora com xXxHolic, aos treze anos, que entendi toda a carga de poder que um nome carrega consigo. Yuuko Ichihara, ao se apresentar ao jovem e confuso Watanuki, deu-lhe um nome falso. Dizer o verdadeiro deixa o ser nomeado passível de manipulação, vulnerável a quem conhece a sua identidade. Em certas culturas, não se fala o que não é desejado usando o termo original. Para evitar a maldição e invocar o que não se quer, emprega-se outros designativos. Pronunciar ou escrever chama aquilo que não é bem-vindo. Às vezes, tinge-se de pudor ao evitar certos verbetes do dicionário. "Estou naqueles dias", "fizemos amor", "passou dessa para melhor". Para quem cuidou de mim, deixar encoberto o que é a coisa que reside em minha cabeça afasta o seu verdadeiro poder. É algo, apenas. Sem nome, sem documento. Me deixa prostrada, me deixa à flor da pele, me faz chorar quando não devo, me faz sentir um gosto metálico na boca ao primeiro sinal de perigo. Conhecer a fundo me fará absorver aquilo que deve ser mantido sobre sigilo, incorporando uma personalidade que se justifica em manuais de medicina. Mas, se por um lado mantenho uma identidade fora de códigos que desconheço, na outra ponta me sinto sem nada para combater o que quer que more em meu corpo. Indefesa, trago fórmulas externas para conter o que, talvez, pudesse ser resolvido no momento em que pronuncio seu nome em voz alta. Não para invocar, e sim para domar, segurar pelo pescoço e imobilizar no chão, feito cobra contida. A rainha demorou três dias para, findando a aposta, revelar a Rumpelstiltskin que ela conhecia o seu nome. Domado o duende, este desaparece em fúria, partindo-se em dois. Diferente da protagonista do conto, levei mais de trinta anos para arranhar uma hipótese sobre a coisa que vive em mim, escrevendo e riscando em cadernos as suspeitas sobre sua verdadeira identidade. Deixo, porém, que ela acredite que sigo desconhecendo seu batismo. Na hora certa, repetirei seu nome três vezes. E nessas três vezes, serei, enfim, capaz de ser uma frota inteira apenas pelo poder daquilo que sai da minha boca.
- Será que realmente o brasileiro não lê?
Rolando a timeline no Instagram (sempre ele), me chega um post de um autor relativamente conhecido, cujos livros foram publicados por uma grande e queridinha casa editorial. A soma em sua rede não é tímida, mais de dez mil seguidores já são alguma coisa se considerarmos um mercado que valoriza bastante números a texto , e ele ventilou em uma publicação: “O Brasil tem um problema muito sério na literatura: pouquíssimos leitores. O resto é consequência.” Nos comentários, muitas pessoas endossavam o posicionamento, inclusive chamando o país de “bostil”. Eu, que nem podendo pegar treta na internet eu posso, visto que meu punho ainda não caiu do braço, embora esteja perto, não consegui segurar. Não porque me considero o bastião da literatura brasileira, e sim por causa dos meus amigos que trabalham diretamente com isso, para além da escrita em si. Não fazia um dia direito que eu assistira ao podcast do Vida & Arte , em que meus amigos pessoais Isabel Costa e Talles Azigon falavam sobre o lançamento de Pitaya , primeiro livro da Bel, publicado pela editora do Talles, a Substânsia , e sobre suas vivências enquanto pessoas da cena da literatura cearense. Bel, além de cronista do Jornal O Povo, é professora da educação básica e mediadora de leituras. Talles, que conheci quando ele me segredou que fizera um poema dedicado a mim, é poeta, produtor cultural, editor e cabeça da biblioteca comunitária Livro Livre Curió . Gente que têm muita, mas muita vivência. Durante o podcast, ao explicar sobre a Livro Livre Curió, Talles traz uma informação importante, e dolorosa: em 2015, o Curió foi palco de um evento tenebroso, que vitimou onze pessoas e deixou outras sete feridas. As mães das vítimas buscam ainda hoje justiça pelas famílias dizimadas, em processo que se arrasta há quase dez anos . Porém, a iniciativa da biblioteca muda a perspectiva sobre o bairro em si e sobre quem mora no Curió. Não são mais conhecidos pelo sangue nas calçadas, e sim pelos livros que saem da casinha pintada à Rua George Sosa, 109, que recebeu até mesmo Dona Conceição Evaristo para um café. Crianças que cresceram entre as prateleiras de metal envergadas seguiram rumos pelas letras, afirma Talles. Escolheram jornalismo, produção cultural, edição. Cito a Livro Livre Curió porque acompanhei a sua gênese, uma semente que surge a partir da casa de Talles e vira referência turística e cultural para Fortaleza, cheia de atividades para quem tem pouca e para quem tem muita idade. São pessoas que vão para lá atrás de livros, de conversas, de café, que são acolhidas pela Dona Ritinha, que adora papear e tem assunto para mais de uma tarde. É pensando nesse lugar que me vem o estranhamento ao post do referido escritor que abre este texto. O brasileiro não lê? Mesmo ? Virei rata de editais desde que fui aprovada em um três anos atrás, o que rendeu a Fisheye a edição definitiva (ou “novo testamento”, como também gosto de chamar). Nas áreas de literatura, há algumas categorias de submissão, que vão desde a publicação em si a atividades de circulação — como a própria mediação. Logo, o fomento e o incentivo à leitura fazem, e precisam ser vistos como, parte de um projeto , o que vai muito além de ter uma rede social para indicar livros. Não estou, claro, desmerecendo criadores de conteúdo que trabalham com esse nicho, mas são áreas diferentes, e ter isso em vista é importante. Digo isso, também, porque o amplo convívio com a tecnologia ainda não é uma realidade unânime. Mesmo que 84% dos brasileiros tenham acesso à internet hoje em dia , 76% não têm habilidades digitais . Não dá para alcançar todo mundo apenas com perfis em Instagram, TikTok, Xuíter, por mais que essas contas possam facilitar a difusão de novos títulos. O presencial segue com sua força intacta, e o fomento vem indiscutivelmente pelo incentivo público. É o incentivo em espaços destinados à cultura, como bibliotecas e livrarias de rua, em profissionais que conduzam as discussões em encontros, seja nos grandes centros e, principalmente, nos interiores do Brasil, em autores que precisam de investimento para rodar seus trabalhos — todo esse universo também faz parte da cadeia do livro. Há reportagens que parecem reforçar esse sentimento de desprezo do Brasil pelos livros. No final do ano passado, a Publishnews reportou que apenas 16% do público de fato compra livros — motivado, compreensivelmente, pelos valores altos do mercado. Outro dado da CNN parece ainda mais preocupante: 66% dos estudantes não conseguem ler mais do que dez páginas de um texto . Porém, nessa mesma reportagem, há um fio de esperança. Diz: Apesar dos indicativos negativos, os jovens brasileiros veem a leitura de forma positiva. Conforme questionário do Pisa, tanto na rede pública quanto na privada, mais de 40% dos alunos afirmam que gostam de falar sobre livros, média superior à registrada pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Volto mais uma vez à publicação que abre este artigo. Como falei, não segurei nem mesmo meu punho dolorido e redigi uma resposta ao colega, tendo em mente meus amigos e todo seu trabalho na cena literária de Fortaleza. Ele me respondeu também em pouco tempo, um pouco mais desiludido. Disse que se sente escritor de verdade estando ao redor de gente, mas precisa vender em rede social. E aí eu entendi que o mal dele não era o brasileiro que não lê, mas a rede que não entrega, os números que não sobem, um mercado que se baseia em dados que podem ser convertidos em venda. O problema, então, nunca foi esse leitor, e sim esse livro que não alcança o leitor, a carta extraviada pelo correio. Mas esse é um ponto para outra publicação, outra linha de pensamento. O que importa aqui, tanto para mim quanto para esse colega cansado, é encontrar a pessoa que se interessará pelas histórias que temos a contar. Talvez, com um cafézinho na Dona Ritinha, e uma conversa com o coração mais calmo, a resposta chegue.
- Nós vamos ficar bem
Este texto foi originalmente publicado em 2022, muito antes de eu terminar Entre quadros e balões. O tema, porém, é excelente. Entrei em bloqueio criativo. Justo quando, em tese, não deveria, no momento da edição do projeto a que chamo de EQB, peguei pânico de ver uma página do Google Docs. Para quem não sabe, submeti EQB a um edital e aguardo retorno, e este fato, somado a uma ansiedade patológica e uma severa cobrança autoimposta, fritaram meus poucos neurônios ainda na atividade. Muitos medos me atravessavam — e ainda estão por aqui: e se este projeto não for vendável? E se encalhar livro aqui em casa? E se as pessoas não gostarem? E se estiver ruim? E se…? Nesse meio tempo, aprendi a fazer crochê com meu amigo Luan, que me ensinou de muito boa vontade e me ajudou bastante. Porém, não resolveu. Ter uma nova atividade aliviava a pressão de lidar com a página a ser editada, mas postergava o momento do confronto. Por vezes, troquei as palavras pelas linhas, pelos entrançados que pareciam funcionar muito melhor do que conjunto de parágrafos que não faziam, aos meus olhos, sentido algum. Mas se eu pretendia — e pretendo — passar em um edital, precisava encarar o meu pavor ainda que sob pressão. Foi assim que voltei ao mundo da Becca Syme . Para quem não conhece, Becca Syme é uma coach (sim, coach ) de escritores — e, ao contrário do que vemos por aí, é uma profissional altamente responsável e que considera as dificuldades do mercado e da profissão antes de sair orientando seus mentorados. Descobri Syme através do trabalho da Zoe York e logo dei uma chance aos primeiros livros da sua série Dear Writer, You Need to Quit . São trabalhos bem curtos, com premissas que afligem qualquer pessoa escritora, mas com resoluções absurdamente simples, daquelas que paramos pra refletir “por que não pensei nisso antes?” E Becca não é uma autora meritocrática. Considera as múltiplas realidades, o que a tornou uma profissional muito querida para mim. Foi, portanto, a ela a quem recorri quando me percebi em bloqueio e tão amedrontada como eu estava. O livro que peguei foi o Dear Writer, Are You In Writer’s Block? , bastante condizente com a minha realidade. E foi como receber um abraço, que acolhia o meu pavor e dizia: “isso realmente está acontecendo com você, mas não se preocupa que tem jeito.” Dentre muitos conselhos úteis, como metáforas com campos de centeio que precisam de temporadas sem plantio para renovação do solo, existiu um em específico que me tocou profundamente, outro desses extremamente simples, mas que não pensamos com frequência. Eu vou ficar bem. Recebeu resenha negativa? Eu vou ficar bem . Não vendeu como gostaria (sendo, é claro, uma pessoa escritora que não depende da escrita para sobreviver)? Eu vou ficar bem. O feedback não saiu tão positivo quanto se esperava? Eu vou ficar bem. Como eu disse, é uma premissa simples, porém não é um reforço que vem à cabeça quando as coisas degringolam para o lado negativo. Vamos continuar em pé mesmo se nada der certo, se nossas expectativas não forem atendidas. Porque, como a própria Syme fala: That “parental” soothing voice is really important to engage in these moments because in order to flatten out that spiral, we need to deconstruct the premise of the fear. We can’t agree with it. O mercado literário, como qualquer outro, é brutal, mas a que custo adianta nos tratarmos com severidade similar? A armadilha do bloqueio criativo existe e pode ser uma poda não desejada às nossas ideias — porque às vezes, como a própria Becca Syme salienta, a mente pede um descanso e o bloqueio vem como essa resposta do corpo às tarefas. Questionar o medo, as premissas comuns e rebatermos o que nos machuca com essa voz mais maleável pode ser não uma chave, porém é um caminho para enfrentarmos o que nos dói. E acima de tudo, termos a certeza: vamos ficar bem.