Malamanhada
- Kami Girão
- 23 de nov. de 2024
- 2 min de leitura

Meu espelho nunca me disse que sou bonita. Bodejava, na verdade, feito papagaio. "Seus peitos estão muito grandes". Para o conserto, oito mil reais, juntados desde que me pus no mundo, atrevida demais para esperar nove meses completos. "Sua barriga está grande". Sem biquínis em meus armários. Ao contrário, lençol de cama moldado ao corpo para esconder dos olhos alheios aquilo que eu mesma também não suportava ver. "Você está fortinha", mas não era sobre os três quilos de músculos que havia adquirido naqueles meses. "Obesidade não faz bem para ninguém", decretava, ignorando o jorro de sangue sobre o qual eu não tinha controle, e que minava minhas forças mais do que três dígitos na balança.
Nos meus diários de diferentes fases da vida, residem listas de coisas de coisas a serem mudadas. A voz infantil. O andar saltitante. A pouca concentração nas minhas tarefas, nos meus estudos. "Só falar de anime com quem gosta de anime. Não levar as brincadeiras tão a sério." O raciocínio lógico sempre em desvantagem, números que não se juntavam para fazer sentido, e sim para que verter de mim toda a água do corpo. As medidas que nunca estiveram na casa dos 30, crime que os tradutores de Meg Cabot anunciaram através do título, a etiqueta 42. Para Douglas Adams, a resposta de tudo; para quem viveu os anos 2000, sentença.
Nunca dei cabo a nenhum dos itens dessas listas, que se repetiam como metas de ano novo, desperdício de papel reforçado ao fim de cada calendário. O espelho chamava de falta de força de vontade. Usava tom desdenhoso para apontar o açúcar que meu corpo celebrava em receber. Se fazia de médico, usando estetoscópio para dizer que não se cuidar assim me faria perder os homens, os que estavam na minha cama e os que viveram apenas nos meus diários. Toda malamanhada. Que não cabe em qualquer cadeira, em assento de ônibus, em roupa de loja de departamento. Que não consegue botar um brinco, um blush, uma roupa mais arrumadinha, um hidratante ao fim do dia. Que não aproveita a vida porque a vida se aproveita em meio de gente, de barulho, de álcool 70% virado goela abaixo. Para quem a pele não suporta perfume no cangote, atrativo para lábios. Mas, sim, quem sempre se permitiu viver escondida por trás de saco de batatas.
Aos poucos, os espelhos deixaram meus quartos. No escuro, se para eles eu olhasse, veria bicho feio, à espreita do sono da criança que desgostava das luzes apagadas. Foi assim que aprendi, que não se olha para espelho de noite. De dia, tamanhos compactos refletem apenas o que eu preciso para não borrar o batom, para ver se a pele está limpa e os dentes, escovados. Às fotografias, não presenteio com frequência com meu rosto. Mas me deixo refletir em superfícies opacas, tintas, adesivos e dedos sujos de cola. A lateral da mão, manchada ora de azul, ora de preto, diz mais verdades que maldição de madrasta má, reforço que vem não do que se vê, e sim do que se ouve por aí. Malamanhada, com certeza. E bem jeitosinha também.
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