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Treze anos no temporizador

  • Foto do escritor: Kami Girão
    Kami Girão
  • 27 de dez. de 2024
  • 8 min de leitura
Cena de Alice no País das Maravilhas, ilustrada pelo desenhista inglês Arthur Rackham. Nela, Alice, a Lebre e o Chapeleiro estão servidos à mesa - a menina à ponta, os demais ao seu lado. Xícaras, bules e pires estão dispostos sobre a mesa.
Arthur Rackham

Mesmo sendo habilidosa com as mãos, odeio usá-las para cozinhar. Não suporto. Das habilidades mais básicas da vida, preparar meu próprio alimento é a que menos domino e a qual mais sinto aversão. Há uma série de fatores: o espaço pequeno da minha cozinha, que permite apenas uma pessoa por vez entre a bancada e o fogão; a supervisão do Diego, que jamais fez curso, porém é exigente feito um chef francês da alta culinária; o tédio que me assola logo nos primeiros minutos do preparo. Por não ser algo que me motiva, me distraio. Quero sair de perto das panelas, dos ingredientes dispostos sobre o mármore. Não tenho qualquer paciência para obedecer ao tempo de cada coisa que vai ao fogo.


Apesar de ser inimiga número um de qualquer coisa que envolva culinária, reconheço que a metáfora da cozinha é a que melhor se aplica à vida como um todo. Da mesma maneira que um alimento tem seu próprio tempo de cozimento, de minutos a horas, tem coisa que também só funciona seguindo relógio próprio. Tudo demora para quem, como eu, é impaciente e ansioso. Mas ter pressa jamais adiantou ponteiro algum.



Neste ano, voltei à universidade para ficar em paz com a minha consciência. Por muito tempo, me julguei por jamais ter conseguido concluir meu curso de Letras na federal daqui. Ainda que racionalizasse os motivos para não ter pegado o canudo (eu trabalhava, os horários eram ingratos, eu detestava a grade curricular e os professores com a mesma sensibilidade de um cavalo dando coice), o julgamento estava ali, me maltratando internamente. Vinha de dentro, mas também de fora, em forma de comentários da família, de conhecidos. Alguns amigos sequer entendiam por que eu estava voltando para algo pelo qual nutri tanto desgosto - e minhas justificativas pareciam ainda mais sem sentido.


Porém, mudar de universidade foi uma boa estratégia. Troquei a federal pela estadual. O curso, antes feito com certo sofrimento, se tornou magicamente atrativo para mim. Professores mais humanos, diálogo mais aberto, grade curricular que me brilha os olhos. Gosto de fazer Letras na UECE porque conversa comigo, com os meus interesses e com a minha realidade enquanto trabalhadora. Nesse processo de redescoberta, assuntos que antes me causavam aversão me despertam interesse para saber mais, discutir, conversar. Literatura foi um deles.


Fizemos as pazes, a Literatura e eu. Ela me parece menos abstrata, um tiquinho mais tangível, mesmo que coisa pouca. Mérito, também, do meu professor Douglas, por quem me afeiçoei rapidamente. Sinto vontade de ser participativa nas aulas dele e estou sempre anotando diagramas que, mais tarde, me fazem pensar. Como quando perguntei o que, para a academia, servia de princípio para classificar um livro bom ou não. Douglas me explicou que era tanto a forma quanto o conteúdo, mas resumiu ao dizer que o texto bom é aquele que perdura. Que atravessa os anos e se mantém atual, abraçando a complexidade de ser humano. Pode fazer muito sucesso agora, porém, se ficar apenas na superfície, vai ser esquecido.


Fiquei pensativa sobre alguns nomes que foram sucesso estrondoso na década passada, inclusive na minha adolescência, mas que surgem menos nas bocas das pessoas que leem. Meg Cabot, por exemplo, era referência de livro jovem para quem, como eu, teve seu estirão nos anos 2000. John Green foi avassalador na década de 2010. Jojo Moyes vivia sobre as prateleiras mais acessíveis das livrarias - isso, claro, falando de nomes estrangeiros, porque não vou trazer à pauta colegas do lado de cá. A reflexão chegou em mim feito um piano sendo lançado sobre a minha cabeça do décimo sexto andar de um prédio da Aldeota.


E, ainda assim, acredito que mesmo o piano teria doído menos.



Entrei muito nova no mercado editorial, emulando a escrita dos livros gringos que chegavam às minhas mãos e aplicando todas as regras que aprendia para fazer redação no vestibular. Essa, inclusive, foi uma fase péssima na minha vida: havia sido aprovada para um curso que não era o meu desejo, me sentia completamente incapaz de entrar em outra graduação mais alinhada comigo, media meu valor pelas notas das provas que fazia. Era a ansiedade da escola elevada à potência com a entrada do fator "universidade".


Eu não me via como professora - principalmente da educação básica. Venho de uma família ligada à educação, pai e tios professores, mãe pedagoga (ainda que jamais tenha exercido). Meu caminho apontava para trabalhos ligados à criatividade, que fossem práticos. Escolher viver de escrita nessa idade parecia natural não apenas porque inseria esse fator de extrema importância para mim, como também me validava perante os outros: eu tinha capacidade de escrever um livro inteiro, completinho. Conseguia começar e terminar algo sem desistir no meio do caminho (coisa sempre pontuada pelos meus), sem precisar alcançar notas estrelares no vestibular. Algo que me destacava ao meu próprio modo, que dizia para um conjunto de pessoas que, sim, eu valia a pena.


Eventos mudaram completamente essa visão da escrita enquanto ofício, por mais que não tenham alterado em nada o meu desejo de ser validada. Se não fosse pelo meu ciclo de conhecidos, que fosse por uma casa editorial grande, respeitada, por pessoas do ramo, gente que pudesse me olhar e dizer aquilo que eu não conseguia enxergar em mim mesma. Essa necessidade da aprovação externa me deixou em um estado ansioso que me fez percorrer caminhos errados, muito custosos. Me atropelei para me encaixar naquilo que diziam que era a cartilha do escritor contemporâneo: lançamentos consecutivos e em tempo hábil para evitar o esquecimento dos leitores, das redes. Aceitei contratos em que eu perdia muito, em vários sentidos, apenas para tentar angariar essa aprovação tão desejada. Como resultado, fiquei sem grana e coloquei no mundo textos inacabados, que poderiam ser melhores se eu tivesse me acalmado o mínimo possível.


Foi só nesse ano, porém, quando resolvi lançar Entre quadros e balões de maneira independente (coisa da qual muito me orgulho), que percebi certos problemas na maneira como o mercado editorial se articula hoje, em vias de virarmos o ano. A começar pela necessidade de presença online constante, quase a nível de criação de conteúdo, para fazer o livro chegar em quem precisa. Tentei, Deus sabe que tentei, apenas para me frustrar quando o Instagram, meu atual e principal nêmesis, derrubava meu alcance em qualquer mídia - vídeo, foto, story. Não vinguei no TikTok, mesmo tendo criado um calendário bonitinho de posts e seguindo as tendências do momento. Não obtive sucesso no finado Twitter, que o diabo o tenha, angariando tão poucos retweets que nem valia a pena o esforço. E aí veio a porrada: o problema está em mim, em minha péssima alma marqueteira, ou está nessa internet que se centraliza em torno de redes sociais e big techs?


O artigo da Rebecca Jennings é muito elucidativo nesse ponto, ao mostrar que, independente de qual seja a sua área, ser criador de conteúdo virou a exigência da nova década. Falo da escrita porque também faz parte da minha atuação enquanto profissional, porém não posso não citar minha vivência enquanto designer e os meus dez meses de desemprego. Um dos conselhos mais recorrentes que recebi foi estar presente no LinkedIn. Me fazer ser vista por recrutadores, mostrar minhas habilidades e, em algum nível, produzir conteúdo, sim. Como falei nesses dias, a sensação constante era a de ser um pássaro tentando acasalar. Praticamente um pavão macho.


Unida a isso, vem a primeira regra do novo escritor contemporâneo, aprendida lá atrás, quando eu sequer tinha atravessado o vale que separa adolescência e vida adulta: publicar constantemente para não ser esquecido. Nessa nova década, extrapolaram esse item da cartilha. A velocidade de consumo de informação atingiu um nível surreal, a ponto de nós mesmos não darmos conta do tanto de coisa que nos chega. Uma passeada rápida pela Amazon mostra todo um catálogo de livros e mais livros e mais livros que o algoritmo vai entregando assim, em cascata, títulos e capas se confundindo em uma maçaroca de formas e cores que, após um tempo, se aglutinam e vira uma coisa só. Para alimentar o consumo desenfreado, uma produção desenfreada. Não é assim que o capitalismo, afinal, funciona?

Se minha ansiedade antes residia em publicar textos para conseguir a aprovação externa, ela mudou o foco principalmente neste ano, pós-EQB. Eu não estava mais preocupada em viabilizar um livro, mas sim em agradar um algoritmo, um bocado de códigos que ninguém consegue entender às claras, de regras confusas, perenes. Foi quando percebi que, não, meu nível de produção não é o mesmo do que uma rede social exige. Me demoro muito trabalhando um romance, um roteiro. Independente do que eu faça, a menos que me atropele de novo, é impossível não ser esquecida. Eu serei. E não estou nem um pouco disposta a pagar por um seguro.



Foi nesse contexto que as aulas do Douglas chegaram em mim, no exato momento em que eu me sentia confusa e ansiosa por aquilo que não tenho controle. A epifania veio feito holofote em show de forró no interior do Ceará, ligada para desorientar mesmo. O tempo do mercado editorial, que hoje obedece a essa internet centralizada, focada em produção incessante de conteúdo, não dialoga com o tempo da literatura. São dois cronômetros diferentes, planetas que rotacionam ao redor do Sol segundo sua própria natureza. Um ou outro vai ser escolhido, e escolher também significa sacrifício. Respeitar o tempo de um texto pode até garantir, quem sabe, uma vida mais longeva a ele, mas seguir por esse caminho é abrir mão da própria existência dentro do contexto virtual. Na contramão, assegurar a presença online pode reduzir o tempo útil do livro. E não há problema em escolher ou um, ou outro, desde que essa opção seja feita com consciência. Jamais como imposição.


Logo no primeiro capítulo de Romancista como vocação, Murakami faz umas analogias bem interessantes sobre a insistência do escritor em sua atividade. "O romance se parece com um ringue de luta livre, onde qualquer um pode entrar como quiser", diz. Adiante, explica a ideia: "Escrever um ou dois romances não é muito difícil, mas continuar escrevendo por muito tempo e viver disso é uma tarefa árdua". Para Murakami, se manter enquanto romancista exige algumas coisas, como determinação, sorte, coincidência, mas principalmente competência para permanecer. "Os romancistas sabem muito bem quão árduo é continuar sendo romancista."


Segundo o escritor, a velocidade para escrever um romance é como a de uma caminhada, mais devagar do que um passeio de bicicleta. Tem que ser feita na marcha lenta. Noemi Jaffe, em Escrita em movimento, corrobora com o pensamento do autor. Explica: "Escrever é um ato lento e assim deve ser. Prestar atenção aos detalhes, cultivá-los, demorar-se sobre eles e permitir que também o leitor conheça cenas e personagens em suas nuances é um trabalho exaustivo e incessante."


Claro, isso não é regra. Nem todo mundo vai enxergar o próprio trabalho com a escrita como algo que deva demorar - afinal, livros também são sustento, e boletos não escolhem data. Não tenho o menor interesse em dizer o que é certo e o que é errado, porque não acredito em certo e errado em arte. O que me guia hoje, porém, é essa consciência sobre aquilo que quero e que faz sentido para mim, independente do que o Zuckerberg decida sobre seus puxadinhos na internet.


Mesmo detestando cozinha, consigo ver que literatura e mercado agem de acordo com temporizadores diferentes. Escritores idem. O preparo de uma farofa de calabresa não será o mesmo de um risoto, que também não passará o mesmo tempo que um bolo no fogo. Não há problema nenhum. Não confundir as receitas, porém, é essencial. Para quem cozinha e para quem se alimenta.


Demorei treze anos para entender e ajustar o meu temporizador. O lado positivo é que não erro a receita nunca mais.

 
 
 

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